23 de novembro de 2024 08:43

“Zero tempo de tela para crianças com menos de 6 anos”, defende neurocientista francês autor de ‘A fábrica de cretinos digitais’

Em entrevista à Crescer, Michel Desmurget, que lança livro no Brasil neste mês, fala sobre o impacto negativo das telas para o desenvolvimento infantil

 

 


 

 

Regular o uso de telas dos filhos é, sem dúvidas, um dos maiores desafios para pais e mães atualmente. Para responder às angústias das famílias sobre esse tema, alguns especialistas são categóricos em relação aos efeitos negativos que elas têm para o desenvolvimento infantil, enquanto outros acreditam que os eletrônicos podem trazer benefícios para os pequenos.

O neurocientista francês e diretor de pesquisa do INSERM (Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica – França), Michel Desmurget, que lança neste mês o livro ‘A fábrica de cretinos digitais: o perigo das telas para nossas crianças’ (Editora Vestígio, R$64,90), encontra-se nessa primeira categoria de estudiosos.

Com uma vasta pesquisa sobre o tema, baseada em evidências coletadas na França e em diversos outros países, Desmurget faz em seu livro um alerta sobre como as telas afetam negativamente o desenvolvimento infantil e defende que a exposição da criança aos eletrônicos seja adiada o máximo possível.

 

“Quanto mais nova a criança tiver acesso às telas, mais risco ela corre de usá-las excessivamente, pois o cérebro é muito imaturo nessa idade. Zero tempo de tela para crianças pelo menos até os 6 anos, mas aconselho os pais a resistirem o máximo que puderem”, disse em entrevista à Crescer.

 

Apesar dos dados apresentados por Desmurget terem uma sólida base científica, o assunto ainda causa controvérsia entre especialistas. A Associação Americana de Pediatria (AAP), por exemplo, recomenda que crianças de até 2 anos não sejam expostas às telas e pequenos entre 2 e 5 anos fiquem no máximo uma hora por dia na frente de dispositivos, o que não causaria prejuízos.

“O uso excessivo de telas por crianças está associado a uma série de problemas de saúde como sono reduzido, aumento da obesidade e atrasos emocionais sociais e de linguagem. No entanto, os efeitos do uso limitado para o desenvolvimento do cérebro e para a saúde das crianças não são totalmente compreendidos atualmente. É preciso mais pesquisas sobre o tema”, afirmou a AAP em nota.

Para Desmurget, porém, os estudos publicados já são suficientes para que os pais adotem um posicionamento mais rígido em relação às telas. Em entrevista à Crescer, o pesquisador defende seu ponto de vista, explica como as telas podem interferir no desenvolvimento do cérebro das crianças e dá dicas de como estabelecer limites para uma relação mais saudável dos pequenos com os eletrônicos. Confira:

Como as telas interferem no desenvolvimento do cérebro das crianças?

Vamos começar entendendo que o tempo que as crianças gastam com telas atualmente é imenso. A partir dos sete anos, as crianças gastam, em média, cinco horas por dia em telas e os adolescentes mais de sete horas. Esse período em frente às telas consome o tempo que deveria estar sendo dedicado a outras atividades essenciais para o cérebro funcionar de forma eficiente como dormir, ler, praticar atividade física e fazer a lição de casa. Dessa forma, elas prejudicam indiretamente o desenvolvimento infantil.

Há também uma interferência direta das telas na atividade cerebral porque elas oferecem uma estimulação sensorial constante com sons, cores e efeitos visuais maiores do que o cérebro é capaz de processar de forma saudável. As crianças, especialmente, não estão fisicamente preparadas para isso. O resultado dessa super estimulação são prejuízos significativos na capacidade de se concentrar e manter a atenção.

Alguns estudos com animais reproduziram o efeito que o uso de telas tem para o desenvolvimento infantil e demonstram que quando os filhotes crescem em ambientes com muitos sons e estímulos visuais, eles não se desenvolvem de maneira adequada e se saem pior do que os criados em um local natural e tranquilo.

Por fim, as telas têm um impacto negativo nas habilidades sociais das crianças, porque elas substituem as interações face a face e as conversas entre filhos e pais, por exemplo.

Como você avalia o aumento do uso de telas durante a pandemia?

A pandemia foi a desculpa perfeita para que muitos adultos deixassem as crianças usarem telas indiscriminadamente. Ela tornou as coisas mais visíveis e os problemas apareceram, mas o uso excessivo já estava lá.

A pandemia também trouxe o ensino remoto, que diversos estudos já mostraram que é menos eficiente do que o presencial, principalmente para os mais jovens. É melhor do que nada, sem dúvidas, mas não é capaz de substituir a presença física de um professor.

A tecnologia não é inútil para o processo de aprendizado. mas quando você deixa que as crianças utilizem eletrônicos durante a aula, elas geralmente acabam cedendo a distrações e usam as telas como recreação. As pessoas se impressionam com a tecnologia e a colocam como o caminho para solucionar todos os problemas, mas isso não é verdade para a educação.

O ensino remot também aumenta a desigualdade social, deixando as crianças mais vulneráveis socialmente e economicamente para trás. Portanto, avalio que o uso de telas durante a pandemia foi extremamente negativo para a educação e o desenvolvimento dos pequenos.

Você aponta que a tecnologia distancia as pessoas, mas jogos online, por exemplo, foram uma das formas que as crianças encontraram de estarem próximas dos amigos durante a quarentena. Como você encara esse tipo de socialização?

Não sei o que você está chamando de socialização. Se você considera que crianças gritando uma com a outra e tentando se matar em um mundo virtual é uma forma de socialização, tudo bem. A verdade é que, em qualquer situação, você consegue encontrar um lado positivo.
Até o cigarro pode ajudar as pessoas a perder peso, mas comparado com seus malefícios, isso é irrelevante. Vejo os videogames da mesma forma. As crianças podem até socializar através deles, mas a pergunta é como eles estariam socializando sem essa mediação?

Quando você olha o efeito do uso de videogames na performance acadêmica das crianças por exemplo, a queda é imensa, afetando a capacidade de se concentrar e aprender. Seu uso também provoca o aumento do sedentarismo. Enfim os prejuízos que o videogame traz superam em muito os pequenos benefícios, como a socialização mediada ou melhorias no reflexo.

Vamos pegar o exemplo da China, que está em primeiro lugar no PISA, ranking para estudantes do mundo todo, e um dos fatores para esse sucesso é o fato de eles controlarem o tempo de tela das crianças de forma rígida.

Você afirma que as crianças hoje em dia são a primeira geração a ter, em média, um quociente de inteligência (QI) mais baixo que o dos pais em países desenvolvidos. Você acha que o QI é uma medida válida para a inteligência? E como o tempo de tela pode afetá-lo?

O QI não diz tudo sobre uma criança. Não é uma medida perfeita de inteligência, mas mede algo. O QI está diretamente relacionado à performance acadêmica, social e profissional. É uma medida que mostra como o cérebro está funcionando a nível cognitivo. Então quando você comprova que o QI está caindo, é um sinal de alerta de que algo está muito errado.

Existem vários fatores que interferem no QI. As telas são um deles, assim como a qualidade do sistema educacional e de saúde do país. Em nações em desenvolvimento em que esses sistemas ainda estão sendo aprimorado, você não nota queda de QI nas novas gerações. Mas em países que tem uma estrutura pública de educação e saúde consolidada há décadas, como os nórdicos, você observa uma queda de QI nas crianças.

É a primeira geração que tem um QI menor que a anterior e temos fortes indícios de que é por causa do uso de telas, já que os outros fatores se mantiveram estáveis.

Não é surpresa que o QI tenha caído nesse cenário. Conhecemos o efeito negativo que as telas têm nos cérebros da criança. As telas prejudicam principalmente o desenvolvimento linguístico, a concentração, a aquisição de conhecimentos básicos e a capacidade de esperar a gratificação, que é intrinsicamente humana. Elas degradam a inteligência. Seu cérebro pode ter uma capacidade incrível, mas se você não conseguir se concentrar e esperar para atingir o que deseja, será burro.

Com que idade você recomenda que uma criança utilize um tablet ou smartphone pela primeira vez?

Quanto mais nova a criança tiver acesso à telas, mais risco ela corre de usá-las excessivamente, pois o cérebro é muito imaturo. Aconselho os pais a resistirem o máximo que puderem. Antes dos 6 anos, recomendo zero tempo de tela em tablets, smartphones, consoles ou computadores e o mínimo de tv possível. E não vejo nenhum benefício em dar um smartphone antes dos 16 anos. Elas não precisam disso.

Como os pais podem garantir que as crianças tenham uma relação mais saudável com as telas?

Primeiro explique o seu posicionamento em relação às telas. Não imponha uma regra sem conversar antes. Mostre que elas são ruins para a linguagem, para a performance, acadêmica e para o QI de uma maneira que a criança consiga entender. Adie a exposição das crianças às telas o máximo possível. Mesmo 15 minutos de tela por dia têm impacto. O cérebro é muito sensível aos estímulos excessivos.

Depois, estabeleça limites em relação ao tempo de tela e ao que poderá ser acessado. Utilize aplicativos que indiquem por quanto tempo a criança está usando o computador ou o tablet e no que ele está sendo gasto. As crianças geralmente subestimam o tempo de uso que fazem das telas e isso as ajuda a ter um maior controle. O conteúdo que as crianças consomem nessa idade têm um imenso impacto em como elas vem o mundo e, por isso, os pais devem estar atentos.

É importante também proibir as telas perto do horário de dormir, pois elas prejudicam a produção de melatonina, o hormônio do sono, dificultando o descanso das crianças. Por mais que seja difícil, mantenha-se firme às regras que você estabeleceu e não pense no agora, mas sim, no futuro, quando os filhos vão agradecer por você ter preservado a capacidade cognitiva deles.

 

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